VOCÊ JÁ ATRAVESSOU O CANAL DA MANCHA?

por Christiane Fanzeres

Independente do que tivesse feito como nadadora em piscina ou mais tarde em águas abertas, a pergunta sempre vinha a tona. Não tinha jeito, todo mundo só conhecia o Canal. Atleta ou não, a referência era inevitável.

Definitivamente, não dava para sequer pensar em parar de nadar sem atravessar aquele trecho de mar ... E sejamos realistas: quem me conhece sabe que isso iria acontecer mais cedo ou mais tarde. Então, antes que eu resolvesse aos 60 anos de idade fazer a travessia e dar um trabalho danado para todo mundo, era melhor resolver logo essa questão!

Complexos a parte, realmente o Canal da Mancha é o "Everest da Natação". Não existe, mesmo internacionalmente, nenhuma outra travessia mais conhecida. E se vários atletas, e até mesmo não atletas, têm na travessia do Canal um sonho, como nadadora de águas abertas eu não seria uma exceção. Sonho de muitos, conquista de poucos.

Até o ano de 2001, menos de 600 nadadores de todo mundo tiveram sucesso em suas tentativas. Só para se ter uma idéia, mais pessoas foram ao espaço do que conseguiram atravessar o Canal. E olha que ele foi atravessado pela primeira vez em 1875 ....
Finalmente tomei coragem e pensei: ano que vem eu vou. Uma pessoa pode passar uma vida inteira dizendo isso para si mesma e sempre achar uma desculpa.
Hoje, penso que de todas as dificuldades que tive de superar, e foram várias, talvez essa tenha sido a principal. Não necessariamente a mais difícil, mas sem dúvida a mais importante. Até então, o sonho era apenas um sonho. E enquanto sonho não existe fracasso.

Uma vez decidido e divulgado não tinha volta. Só que isso não foi feito bem assim.
Em dezembro de 2000 dei o primeiro passo efetivamente: entrei em contato com o Claudio Plit, grande maratonista argentino e amigo pessoal que eu gostaria que estivesse no meu barco. Ele conseguiu uma data em final de agosto com um bom piloto e daí em diante era comigo.

Comecei a treinar em janeiro, seguindo a orientação do Toledo, técnico da equipe do Flamengo, e que fez um trabalho fantástico, pois eu "sobrei" no dia da prova.
Os treinos, no Flamengo e na praia, eram de 10Km em média, sendo que em determinados dias chegava a 16Km em duas sessões. O pior era conciliar toda essa preparação com o trabalho em horário integral na área de Informática. Tudo a ver ...
Mas de uma coisa eu tenho certeza: definitivamente não consigo ser sedentária. Também não é preciso nadar 10Km todo dia, mas praticar esportes é fundamental. Não tenho dúvidas em afirmar que a natação é muito importante na minha vida, física e psicologicamente.

Outro grande problema: patrocínio. O Canal é muito caro, principalmente se você faz questão de ir pela forma segura e oficial. O projeto era de US$12.000 e graça a ajuda da amiga Patricia Amorim, hoje vereadora, consegui parte da verba com a Secretaria de Esportes do Rio de Janeiro. A assessoria de imprensa também foi graças a minha iniciativa e aos amigos, tentando "cavar" espaço na midia.

Outro problema foi me manter sem problemas sérios de contusão. Com um histórico de problemas de ombro e uma contusão inclusive durante a preparação, uns 4 meses antes, eu sabia que isso era sério.

Maratonas são repletas de detalhes e um dos mais importantes é você conseguir identificar e priorizar problemas. Eu tinha que treinar, e muitas vezes abri mão de um aquecimento melhor para cair n'água e começar o treino logo. Em maio não deu outra: dor no ombro. Diminui o treino e fiz fisioterapia direto. O importante era definir o que me causaria um aumento no tempo de travessia e o que poderia me tirar da prova. E uma dor muito forte no ombro poderia acabar com tudo. O Canal da Mancha é conhecido, e temido, por suas águas frias e clima altamente instável.
E se tem uma coisa que todo maratonista sabe, principalmente quem já nadou em água fria, é que na longa distância não se esconde nada. Uma pequena contusão toma proporções gigantes quando você tem de ficar horas nadando.

A parte física, assim como o descanso, são fundamentais, mas a parte psicológica geralmente é a diferença entre terminar ou não uma prova. Você pode estar preparado 100% fisicamente, mas se alguma coisa te pertuba, pode ter certeza que lá pelas 5, 6 horas, "o bicho vai pegar".

Para se ter uma idéia, a estatística de sucesso de Canal era de 8% até um tempo atrás. Hoje, principalmente graças aos equipamentos dos barcos, alimentação específica, avanços nos treinamentos esportivos, etc.. essa média está quase em 50%. Mesmo assim, o índice de sucesso em uma primeira tentativa ainda é muito pequeno.

Dificuldades a parte, embarquei para a Inglaterra. Após uma adaptação de alguns dias, começava a torcida por um "dia bom". Esse era o meu grande medo: sequer poder cair n'água. E isso acontece com mais freqüência do que se imagina.

É tanto detalhe que pode dar errado, que se as coisas acontecem normalmente já é considerado excepcional.

Um breve resumo da travessia: você larga às 4:30 da madrugada, mergulha no breu, com água a 17ºC e segue o barco. Umas 2 horas depois disso, o sol começa a aparecer e o quadro vai mudando: você troca o mar calmo da noite por um revolto do dia. E que cada vez piora mais!

Nunca nadei uma prova tão concentrada. Já nadei provas mais frias, mais longas, com distância maior, por mais tempo, mas nenhuma tão tensa. Foram 10 longas horas de muita tensão, que você vai batendo queixo da Inglaterra até a França. Frio, vento, correntezas, ondas, chuva, raios, tudo vai acumulando ao longo da travessia.

Felizmente, a minha parte física e principalmente psicológica estavam muito bem preparadas. Por incrível que possa parecer para alguns, o grande adversário foi meu estômago. Uma gastrite antiga deu o ar da graça logo no início, me pertubou o tempo todo, provocou vômitos em algumas ocasiões e poderia me tirar da prova, pois se um atleta não consegue se alimentar ele não consegue repor as energias gastas. E sem combustível, qualquer veículo pára.

Tudo praticamente acabou quando finalmente consegui enxergar de forma nítida a costa francesa. Mais uma vez aumentei o ritmo (valeu Toledo!) e simplesmente dei um tiro nos últimos 2Km.
E quem disse que a prova acabava na última braçada? Como terminei exatamente em Cap Gris-Nez, embaixo do farol, não tinha nenhuma prainha por ali para que eu pudesse terminar a prova de forma tranqüila.

Como sempre, nada é fácil e eu ainda tive de escalar umas pedras para que a travessia pudesse ser oficializada (no barco também vai um observador da Associação do Canal da Mancha, que valida a tentativa). Subir em pedras com ondas de até um metro e meio estourando e depois de nadar por mais de 10 horas na água fria, não é tão simples assim.

Mas sinceramente, se fosse necessário eu escalava aquele morro todo até o alto do farol! Mas não precisou tanto, bastava sair d'água que a travessia estava completa.

Festa? Até devo ter feito, mas rapidamente um pensamento ocupou a minha mente: como sair dali e voltar para o barco, que estava a uns 200 metros, afastado das pedras por razões de segurança. Tentando me equilibrar na medida do possível, com os pés cortados por causa da ondas que me jogaram sobre as pedras, consegui voltar para a água e nadar até o barco.

Também sem muita comemoração, pois tinhamos de sair rapidamente daquele local, porque as condições do tempo estavam bem ruins.
Terminei super bem, e a minha preocupação passou a ser não marear! Se eu vomitasse mais a volta para a Inglaterra ia ficar pior ainda ... Nem tirei o maiô, pois o barco balançava muito e nem pensar em descer para a cabine, seria enjôo na certa. Coloquei uma roupa por cima, uma toalha, um cobertor e me sentei confortavelmente em uma cadeira que eles "resgataram do mar" durante a travessia (é, lá é sujinho também...).

Outra vantagem dos dias de hoje: assim que saí d'água, falei pelo celular com a Maria Clara Matta, outra amiga e ex-nadadora que reside atualmente em Londres e fez o eixo Inglaterra-Brasil, acalmando a todos aqui do outro lado do oceano. Fora a Internet, que me permitiu ficar em contato com o pessoal aqui no Brasil também.

Enquanto o resto da tripulação se amontoava dentro da pequena cabine, eu voltei para a Inglaterra na parte de fora, lá atrás no fundo do barco mesmo.

Geralmente se leva entre 2 horas e meia a 3 horas para voltar. Como as condições do mar estavam bem ruins, levamos mais de 4 horas para chegar em Folkestone de volta. Mas foi fantástico. Chuva, vento, ondas na cara, frio, cansaço ... mas com uma felicidade que só quem já realizou um sonho sabe como é.

© - Percival Milani