AFINAL, QUANTO MEDE?

Em todas as palestras que profiro sobre o Canal, as perguntas mais freqüentes dizem respeito ao tempo necessário para realizar a Travessia e à extensão, ou largura, do Canal. A primeira resposta depende de cada nadador - eu fiz em 10h45min, sicrano fez em 12h28min, fulano fez em 20h30min e assim por diante. Quanto à segunda, aí as respostas são as mais variadas possíveis: eu falo em 36, sicrano fala em 33 e fulano fala em 44 quilômetros. A dispersão de valores é muito grande e compromete a credibilidade da informação relacionada à Travessia.

Afinal, qual é a largura do Canal da Mancha? Qual é o tamanho do desafio?
Vamos responder a essa questão por partes, como diria Jack, o estripador.
Em primeiro lugar, veja algumas trajetórias de alguns nadadores que cruzaram - ou pelo menos tentaram cruzar - o Canal.

Trajetórias no Canal

Interessante observar que o melhor caminho entre os dois pontos não é uma reta, não no Canal! As trajetórias mais parecem senóides - curvas em formato de "S" - com o primeiro ciclo positivo. Isto se deve às fortes correntezas do Canal e ao horário de saída sempre constante - uma hora antes da maré alta.
Os nadadores cujas trajetórias estão marcadas "A" e "B" não terminaram suas provas; os demais chegaram à França. O nadador "A" não conseguiu velocidade suficiente em seu início de travessia e dirigiu-se a um banco de areia mais ao norte do Canal: após cerca de 7 horas de prova, não havia se distanciado o suficiente - 5 Km. - da costa inglesa e teve que desistir. Pudera, a continuar neste ritmo, ele levaria mais de 56 horas para concluir a Travessia, se isto fosse possível. Já o nadador B até que tentou, mas desistiu, esgotado, após mais de vinte horas de nado - as ultimas sete quase sem nenhuma aproximação à costa francesa - o que demonstra que chegar próximo à França é uma coisa, chegar NA França é outra bem diferente.

Mas qual foi a distância percorrida pelos nadadores que terminaram a prova? Temos a impressão que aqueles que fizeram os caminhos mais sinuosos nadaram mais que os outros, certo?
Absolutamente ERRADO!
O movimento ondulatório em forma de "S" observado no Canal é devido às fortes correntezas que se estabelecem ao unir duas grandes massas de água, a saber: o Mar do Norte e o Oceano Atlântico. Elas são prioritariamente perpendiculares à direção de esforço do atleta, que nada de noroeste a sudeste. A correnteza, por sua vez, segue o eixo nordeste-sudoeste, alternando de sentido ciclicamente a cada seis horas e meia. Como ninguém aqui colou em Física para passar de ano, é sabido que forças perpendiculares não contribuem com componentes na direção de esforço do atleta. Portanto, a distância percorrida pelo atleta devida exclusivamente ao seu esforço é praticamente constante - variando somente em função do ponto de chegada na França ser mais ao norte ou mais ao sul de Cap Gris-Nez (o "bico" do mapa, do lado francês). O "passeio sinuoso" que ele faz ao longo do Canal não representa esforço próprio e, portanto, não deve ser considerado no cálculo da distância nadada.
Portanto, se você ouvir alguém dizer que nadou por mais de sessenta quilômetros para chegar até a França, subentenda que o mesmo passeou, sem comando de sua direção e levado pelas correntezas por mais de vinte. Mas , com certeza, o trajeto sinuoso implica em maiores esforços por parte do atleta, mesmo que a Física não reconheça o fato matematicamente. Não podemos negar que há nadadores que nadam por muito tempo e avançam muito pouco, devido às correntezas. Vamos agora à segunda parte: quanto é a distância efetivamente vencida pelo esforço do atleta.
O mais comum é você ouvir que o Canal tem 21 milhas de extensão. Os menos avisados confundem as milhas terrestres (1609,3m) com as náuticas (1853,2m) e aí está a primeira razão dos pecados dimensionais: 33,8km contra 38,9km. Qual deles usar, ninguém sabe ao certo. Um segundo fator é que o valor não é redondo em 21 milhas. Eu, particularmente, ouvi do Secretário Honorário da Federação dos Nadadores e Pilotos do Canal (CSPF), Michael Oram, o valor de 21,7 milhas. Isso daria algo ente 34,9km e 40,2km. A terceira razão é que existem duas milhas náuticas: a inglesa e a americana (pode?), mas aí a diferença não é grande - apenas um metro por milha - e não será considerada.
Também usei um software baseado no Chart Datum WGS84, que é um sistema de coordenadas geográficas. Bastou informar os dois pontos e o resultado informado foi 33.395m.
Para tirar a prova dos nove, resolvi calcular pelas coordenadas terrestres, latitude e longitude dos pontos de partida (Shakespeare Beach) e chegada (Cap Gris-Nez). Há uma pequena variação no raio terrestre, que provou ser pouco significativa. Após alguns simples cálculos trigonométricos - "baba do quiabo", quando me lembro das equações de Maxwell - e uma planilha Excel recheada de funções, levando em consideração a variação entre os diâmetros polar e equatorial da Terra, cheguei ao tão esperado resultado:
A menor largura do Canal está entre 35.661 e 35.783m. Vamos arredondar para 36 quilômetros e não se fala mais nisso, combinado?
Quase. Só faltou calcular a curvatura da Terra, pois as contas acima não se basearam em trigonometria esférica e sim, na plana. Cálculos vão, cálculos vêm e cheguei à distância adicional devida à curvatura da Terra:
Cinco centímetros!
Isso mesmo. Apenas cinco centímetros a mais!
Então, para evitar polêmicas, está definido: a distância é de 36quilômetros e 5 centímetros!

É como aquela história do museu de arqueologia onde o guia explica aos alunos atentos:
- Este fóssil tem cinco milhões e três anos de idade.
Os alunos estupefatos perguntam:
- Como você pode dizer com tanta precisão a idade dele?
- Muito simples. Quando eu comecei a trabalhar aqui, há três anos atrás, me disseram que ele tinha cinco milhões de anos...

(revisado para correção de valores em 13/mar/2008)

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© - Percival Milani